sexta-feira, 31 de março de 2017

Outros poemas de Ivo Pereira


Pátria


O regato acorda cedo.
As folhas descendo a ladeira
São as lágrimas da serra
Que choram molhando o campo.
O verde abraça um rio pequeno
Com sua bandeira branca de sede.
Minas tem costas altas e quentes,
Minas tem mãos reluzentes.
As montanhas da terra são mães grávidas
Esperando os filhos santos e heróis
Mortos pela guerra de subir na vida.


Da velha cidade


As pedras duras
Na rua de pedra
As pedras na rua
São as duras pedras.
As pedras pontudas
Na ponte de pedra
São penas que Deus
Soprou na terra.
As pedras das casas
São pedras cansadas
Protegem as virgens
Fantasmas da noite.
As pedras raras
Dessas igrejas
São pedras sagradas
Sustentam o pecado
Da velha cidade.


Sertaneja
a Ituiutaba


A cidade
À beira de um rio.
Um rio sujo
Esconde a cidade.

I-rio, e rio do rio.
Tuiu-povo, to you,
Cidade.
Taba, casa de índio.

Cidade do povo do rio,
O rio do povo da cidade,
O povo da cidade do rio.

O ouro dos caiapós
Espalhados no Pontal.
O pasto dos animais
Nas ruas dos números.

As profecias
De Zé do Óleo,
Fatos e verdades,
Poder dos currais.

Mãe adotiva,
Puxões de orelhas,
Mulher caipira
Currais do poder.

A cidade no leito
De um rio lamacento
Dorme sonhos eternos


Rosário


A árvore resiste
Com o tempo:
Os cupins comem
O ouro dos escravos.

O vento derrubou
Os martírios no chão:
Escorrem lágrimas
De seus galhos secos.

Reviver uma árvore
Não é como
Ressuscitar a fé.

Replantar a fé,
Não é como
Plantar uma árvore.

Um dia a mão tombou
O teatro da sociedade.
O tempo comeu lentamente
A pedra-sabão da alma.


Paisagem mineira


Os profetas andam
Por cima dos muros de Minas.

Cantam os hinos calados
Desse meu Brasil,
Os meninos negros de Minas.

Nas paredes das casas velhas
Está escrito que Minas vive
Presa pelas correntes
Desse meu Brasil,
Os meninos negros de Minas.

Por entre os mistérios de Minas
Anjos de barro guardam
O destino desse país.

Sinos gritam os seus hinos
Das pedras de Minas
Nesse meu país.

Existe uma tristeza imensa
Nas ruas caladas de Minas.
A solidão do poeta morre
No silêncio eterno desta canção.
Poemas de Ivo Pereira


Quadro de verão


O amarelo do trigo
confunde o raio do sol.
O azul do céu
reflete
os olhos dos versos.
Uma árvore na solidão do campo:
uma pintura impressionista
na tessitura de cores e flores.
Nascem imagens puras
na ponta dos dedos.
Uma moça na paisagem
com uma sombrinha aberta
pingo de tinta
no pincel borrado do pintor.
Namorados abraçam a solidão.
Um corvo voa com gritos
a buscar o resto
de semente no chão.
A paisagem pintada
faz Van Gogh renascer
na transparência da poesia.


Santa ceia mineira


Um balde sobre a mesa
Pede posta a ceia insossa.
Sobre a tábua há garfos longos,
Pratos fundos e vazios.

A fatia do pão de gergelim
Foi cortada com o punhal do traidor.
O vinho tinto foi servido em copos de cristais
Banhados com raminhos de urtiga.

E alguém pediu cachaça com imburana
E fumou um cachimbo político
E comeu um bife podre com sangue.

A carne assada foi servida a rigor
No prazer eterno do pecado e da dor.
Dizem que os anjos comem peixes


Quintal


Cortaram as goiabas brancas
Do meu pequenino quintal.
Deixaram somente as verdes
Morrendo com as podres no chão.
Os galhos secaram tristes no sol
Minha infância sangrou no facão.

Os pedaços da vida azeda
Que eu comi com os olhos:
São muitos os doces frutos da terra
E os frutos da terra são doces eternos.

Queimaram o pomar encantado do poeta
E deixaram na alma a cor seca do carvão.

Podaram as flores da primavera
E mataram o fruto quase maduro.
Não se esqueceram de amassar
Com as mãos as raras sementes.


Lágrimas barrentas


“Vale, vida, verde, verso e viola”,
canta o violeiro
nos encontros e nas festas
pelas estradas vermelhas.

Vale o rio de areia branca,
quanta dor Jequitinhonha.

O tropeiro
com entulhos de tralhas,
o berrante solitário
chama a boiada.

A canção da terra,
a poeira nos olhos cansados,
sem ouro e nem diamante,
gente sofrida
na vida
no tempo
e na história.

O rio chora
águas sujas,
a chuva não cai
nos montes sem árvores,
a sede sufoca
a goela vazia,
lágrimas barrentas
na alma do povo.


Milho Verde


Igreja do Rosário
delicado cemitério
fascinante paisagem
a sombra do Itambé
arbusto rasteiro
mágico momento
lá no horizonte
a primeira estrela.
Lajeado vai para o mar
sempre-viva
sempre bela
sabiá canta a manhã
por do sol
abraça a vida.
Lá no céu
de muito longe
estrela cadente
grama verde
casa calhada
mãos sofridas
paredes de tabatinga
telhas antigas
um belo sonho
olhos de anjo
no silêncio profundo
encantado lugarejo.
Poemas escolhidos de Ivo Pereira



A mão e a poesia


A mão que afaga
um livro
amacia o coração.
A mão que amacia
o coração
afaga a alma.
A mão que absorve a arte
abraça o mundo.
A mão 
que molda o mundo
recria o universo.


Escalas emocionais


Há em mim um violão
dolorido
vibrando cordas tensas
quando sente sua ausência,
a mesma ausência.
assimilada por Drummond.
Há um instrumento em mim
que pulsa,
reclama,
solitário,
mas é bom tocar pra você,
disse Caetano numa canção.
Há uma nota em mim
que me faz egoísta
quando amo a mim
na solidão das madrugadas
mais do que a você.
Há uma melodia
suave dentro de mim:
seu andar,
seus passos,
são acordes dissonantes
que quebram meu ritmo,
sua voz me faz falta,
mas não posso obrigá-la
a estar sempre perto
de meu confuso amor.
Há uma vibração em mim
que pede mais sol
em meu corpo frio.
Há um desejo em mim
que busca um sonho
do lado esquerdo do peito -
disse outro poeta -
pautado em notas ascendentes.
Há uma música em mim
que toca minha alma
e cai em si
quando você não ouve
as batidas aceleradas
do frágil coração
do velho poeta
quando te vê passar
com cabelos ao vento.


Sem título


Se eu tivesse que levar
Para uma ilha deserta
Quatro coisas eternas:
Levaria seus olhos verdes,
O sol sobre as montanhas,
Uma laelia purpurata
E um livro de Drummond,
Para que nas pedras,
Nas árvores e no tempo
Ficasse seguro gravado
O mais puro sentimento
De reter para a eternidade
O belo de todos os séculos.


Arraial do Tijuco


Por entre
Os caminhos de Minas
Passando pinguelas e rios
Subindo montanhas e serras
Moças belas nos casarios.

A brisa nos lampiões
Sereno pousando na terra
Fogueira branda no quintal
Serestas e violões
Nas noites do Arraial.

E Diamantina
Brilha
À luz da Estrela Guia,
Lua clara,
Noite vadia.

E a menina esconde,
Brilho do ouro
Diamante,
Pedra rara,
Fada brilhante.

A deusa musa guarda
No coração dos homens
A sina de ser
A pedra mais rara

Que brilha nesta canção.
Outros poemas de Ivo Pereira



Toques


Elogiei seus cabelos sedosos
suas unhas bem feitas
esmalte discreto
belo pé
pequeno amuleto
higiene pessoal
perfeita
boca desejo
lábios grossos
grandes lábios
corpo delgado
vestido sensual
abaixo do joelho:
- Poxa, que coxa!
Segurei sua mão
delicadas mãos
cheiro bom de creme
pele macia
dedos longos e finos
de pianista
imensos olhos ovais de jabuticaba
adoro a fruta
chupo até o caroço
sorriso de gelar o olhar.
Toquei
sua alma,
mas não toquei seu sexo
e nem seu coração,
toquei
levemente sua face rosada,
mas não era amor.


 O uivo da loba


Vou ali assistir a lua
na imensa tela plana de Deus, 
nos olhos escuros da noite
de bonde com o infinito...
naquela noite silenciosa. 
no impressionante céu,
mesmo com neblina,
sereno e frio
sobre as montanhas
fiz amor com você
de madrugada
lá na caixa d'água
de Diamantina...
não estávamos sozinhos,
as estrelas piscavam pra gente
e a lua cheia,
grávida de poesia,
repleta de sentimento
iluminava nosso amor
e foi belo ouvir você
uivar pra lua
naquele momento.


 Minas, verde, pedra, poesia



Fazer amanhecer as manhãs em Minas
É abortar o canto dourado dos galos.
Mas a luz sozinha não tece a poesia
Da manhã rara das claras colinas.

Minas acorda cedo e faz amor com o sol,
Veste seu véu branco de virgem pura
E vai buscar no horizonte a sede de luz.

Minas não é pedra adormecida
No esquecimento da história.
É a prata dentro da pátria
Que independente busca vitória.

A Minas do poeta novo
É a mesma do mestre Rosa
Que sabe o segredo da roça
Sagarana pátria do povo.

O poeta é aquele silencioso sonhador
Que no seu sonho de silêncio
Aprofunda-se no silêncio de pensador.

Minas é obelisco sagrado
Que as tribos da terra
Louvam em secreta comunhão.

Minas é abismo profundo
Que o mineiro esconde calado
Por entre os vales do mundo.

Minas é Minas somente
Terra desconfiada de tudo
De tudo desconfiada da gente.
Pode não dizer a verdade,
Mas mentir ela não mente.

Minas é mato
Que o mineiro conhece bem
E que o vaqueiro espalha no pasto.

É preciso não ver só Minas
Porque além existem outras terras
E além de outras terras existe
Um regato profundo de poesia.

É preciso não ver só Minas
Nos versos soltos das rimas
Nas rimas soltas dos versos
Nos versos brancos das minas.
Poemas de Ivo Pereira


Outra paixão
é a lua,
lua nua,
lua crua
que o poeta come todos os dias
como se fosse um queijo do Serro, 
delícia imaterial.
Olho a lua
e lembro-me da infância
quando falavam que São Jorge morava na lua 
e que lá existia um dragão,
eu olhava e não via São Jorge e nem o dragão, 
falaram que a lua era furada feito um queijo,
eu olhava e não via os furos da lua 
e nem o queijo
e todas as noites eu comia a lua 
com meus olhos de menino faminto.



“A beleza é breve”, 
dizem os japoneses
 
embaixo de suas árvores floridas de cerejeiras:
em março,
 
o inverno se vai
 
com o branco da neve e o frio.
 
A primavera chega,
 
dando cor
 
à paisagem do Japão,
em Diamantina entrelaçadas pelos granitos,
as quaresmeiras e os ipês
 
colorem a paisagem mineira.
Mas a beleza da cidade
 
está encravada nos olhos abismados do poeta,
o centro com seus amores
e os arredores com suas flores,
 
a beleza da musa dos diamantes
é permanente,
não existe brevidade
na beleza,
porque mesmo por um momento,
ela é eterna até mesmo em sua fragilidade.
Lá nas grimpas da poesia,
existe uma cidade delirantemente dos sonhos,
tão bela quanto Veneza,
só que em cima de um rio de pedra.
Quando vier a Diamantina,
venha em silêncio,
pois as fadas rondam os becos
em noite de frio
e os anjos
velam a cidade
com a luz da fascinação.


Luz difusa sobre a casa velha
abraçada por folhagem
 
num beco escuro
 
de uma cidade antiga.
A silhueta da lua na noite sombria,
refletida na parede corroída pelo tempo,
revela o casario que se desmancha com a história,
um vento fugidio
serpenteia entre os becos
 
passa velozmente seus dedos,
 
leves dedos de ladrão de cabelos.
 
A moça bonita balança os macios cabelos pretos
 
sob a sedução do vento,
 
aquele mesmo vento atrevido
 
que arrepiou a pele da moça bonita.
 
Morro de ciúmes do vento,
 
mas o vento não é tímido
 
feito o poeta que fica de longe
 
e deixa o vento abusar de suas musas.
 
Vento, desgraçado vento!


Pequenos gestos



Pra bom entendedor
aquele que entende a dor
meio verso basta
meia lua
inteira
meio sorriso
largo
moderato
meio olhar
de gelar a alma
um pingo no livro
é beijo.
O Ivo viu a uva
ovo
e uva boa.
A vida
é um desejo
poeta ri à toa.



Mago


 O ser mago
o ser amargo
a cegueira
o mago ser
o amargo ser
o ser tudo
o sal amargo
o amargo sal
sara o ego
o ego salva
Sara má, go!
O ser todo

Saramago.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Poemas do livro Percepção das coisas (2014), Ivo Pereira



Escalas emocionais


Há em mim um violão
dolorido
vibrando cordas tensas
quando sente sua ausência,
a mesma ausência.
assimilada por Drummond.
Há um instrumento em mim
que pulsa,
reclama,
solitário,
mas é bom tocar pra você,
disse Caetano numa canção.
Há uma nota em mim
que me faz egoísta
quando amo a mim
na solidão das madrugadas
mais do que a você.
Há uma melodia
suave dentro de mim:
seu andar,
seus passos,
são acordes dissonantes
que quebram meu ritmo,
sua voz me faz falta,
mas não posso obrigá-la
a estar sempre perto
de meu confuso amor.
Há uma vibração em mim
que pede mais sol
em meu corpo frio.
Há um desejo em mim
que busca um sonho
do lado esquerdo do peito -
disse outro poeta -
pautado em notas ascendentes.
Há uma música em mim
que toca minha alma
e cai em si
quando você não ouve
as batidas aceleradas
do frágil coração
do velho poeta
quando te vê passar
com cabelos ao vento.


Preces e paisagens


Casarios coloniais
entre ruas estreitas
becos espremidos
apertam o coração
elevam a alma
passam poetas
malucos
bêbados
beatas apressadas
belas moças
nas sacadas
profetas acuados
seresteiros indormidos
flautas e violões
relembram o padre
além das montanhas.



Ídolos e mentores



Não tenho ídolos,
mas mestres ou mentores,
mas não ídolos,
ídolos aprisionam a alma
que ao longo
de minha história de vida
medíocre
mostraram-me os caminhos
mais curtos, sem espinhos,
as lições mais fáceis
no baú da memória.
Depois atravessei a rua
e descobri o outro lado,
senti sua imensidão,
caminhei devagar
e vi o quintal,
mas também sou filho
só mundo
roça mundo
Rosa mundo.
Ídolos existem muitos,
mas mentores são poucos.



Vento da manhã



Todos os dias
às seis horas da manhã
aparece o vento
aquele poeta frio
misterioso
não falha nunca
preste atenção
na hora marcada
coisa de inglês
ele surge
lento
suave
acaricia a manhã
belisca o sol
que ainda nem acordou
traz mensagens geladas
da Patagônia
todos os dias
ele aparece
e mexe com meus sentidos
me desperta
para ouvir o silêncio.



Pamonha seca



Gosto muito
todo tipo
ardida ou não
ácida ou doce
com sabor
de queijo e guariroba
sentir o ardor
do tempero
o olor
úmido e quente
é mágico
nova ou velha
é gostosa do mesmo jeito
não perde a validade
algumas são muito belas
outras nem tanto
mas as aprecio mesmo assim
a qualquer hora
em qualquer lugar
algumas são pétalas de orquídea
outra flor de maracujá
com o tempo
enrugam
igual a uma couve-flor
é bom chupar
as folhas lambuzadas
das pamonhas
secas ou molhadas,
aquela que não chupo
eu não como.


BH é belo


BH não é besta
BH é belo
apesar do trânsito infernal
do sufocante rush
daqui a 50 anos vai parar
de tanto carros e motos
de manhã o clima é ameno
à tarde um insuportável calor
à noite um friozinho
de congelar a alma
amansar o sono
de fazer poeta
dormir no sossego da poesia
uma caipira provinciana
num corpo imenso
de cidade de pedra
mas seu coração não é duro
é mole feito mineiro
quando vê um queijo
e feliz feito goiano
quando vê pequi
no arroz amarelo.
BH me assusta
apesar do que sinto
a cidade me abraça
mas estou só
na imensidão do Mineirão.
Quando Deus fez o universo
achou-o muito escuro
e o pintou de azul
para equilibrar o defeito
e chapiscou estrelas
no infinito do peito.


Tempo – vento


Estou com tempo
para perceber o vento
vou com ele
atrás do tempo
em busca de sonhos
suspensos no ar.

Tempo tempo tempo
cantou Caetano
num grito abafado.

Vento vento vento
sopra o poeta
num lamento solitário.

O tempo
é um sopro
suave
pum de Deus.

Dylan disse
que a resposta
está no vento.

A resposta
está no tempo.


O grito das ruas


Hoje as crianças
levantaram agitadas
mascarados
com paus,
pedras
e bombas nas mãos
mãos lisas
sem nenhum calo
as portas do país
abriram tumultuadas
meninos ricos
desocupados
moleques infiltrados
ao meio de agitadores
sem ter o que fazer
saíram para as ruas
- Tiradentes foi morto
e outros presos
por 20% do imposto
e os meninos classe média
pedem 20 centavos
na redução das passagens
mas eles não usam ônibus
andam de carros importados
mas vão para as ruas
jogar bombas,
quebrar coisas:
lojas,
bancos,
bens públicos
seguindo a cartilha
- Proudhon revisitado,
atrapalha o mundo -,
usando o direito de manifestar
e quebrar o país
atrapalhando a vida
de quem trabalha
a cada passo que dão em blocos
bestas, bando de bagunceiros
pisando na democracia.


Menestrel


a Décio Marquez

Numa noite tranquila
com chuva mansa
caindo ao fundo
na canção suave
das águas de março
tive um inesperado sonho
com um violeiro encantado
e lá estava ele
sentado numa colcha
magicamente tecida
por artesãs do Vale
sobre um chão batido
com cabelos brancos
ao ombro
expondo músicas
sobre um manto sagrado
e uma moça ao seu lado
gentil e sorridente
devia ser um dos anjos
- da terra -,
do céu,
eu disse a ele:
- Você se encantou de poesia, cantadô. -
e ele me respondeu sorrindo:
- Aqui a gente come muitos sonhos!
- e cantou uma bela canção.


Busca interior


Na festa da carne
vou pro mato
colher paisagens
absorver montanhas
do infinito,
pra Serra do Cipó
tomar umas pingas
sem musa
pra não atrapalhar os versos
escrever um livro
ao lado da fogueira
quando cansar de escrever
ler romances melosos
deitado na rede
ouvindo o tico-tico
chamando a poesia
do entardecer
enquanto escrevo
sonho acordado
enquanto leio
viajo sem medo
enquanto observo o mundo
paragens e silêncio profundo
esqueço-me da agitação de BH
a cidade de pedra
dá-me arrepios
mas vou embora
pras montanhas
lá encontrarei o que busco.
E na quarta-feira
quando voltar
vou recolher nas ruas sujas
as cinzas de BH.


No War


Não escondam os belos rostos
das mulheres do Egito,
as burcas abafam seus sofridos gritos
não sufoquem a Síria
com balas coloridas caindo do céu
não massacrem
o povo da Palestina
não matem
as crianças de Nigéria
não agridem
estudantes na Venezuela:
Maduro fechou as portas do país
com as chaves enferrujadas do poder
não invadem a Ucrânia
com soldados frios
autômatos
mercenários
e nem tomem a Crimeia
soberania antes que tardia
não elejam agentes sanguinários
viciados em guerra fria
não levantem muros pra separar
ditador só vem ao mundo pra matar
O mundo não precisa de guerra
No War
o mundo precisa de comida
pra encher as barrigas
de poesia
pra fechar as feridas
paz,
liberdade
e democracia,
matar a fome dos pobres
amolecer os corações dos ricos
quem vai levantar a bandeira branca?
Aquele que não quer dominar outro país
respeitem os limites
do ser humano.


Restos


1.
Tudo na vida
passa
até a própria
vida
ninguém fica pra semente.

2.
A velhice
traz a perspectiva
da morte.

3.
O relógio
bate
muito rápido.

4.
O tempo não para
na ampulheta do universo.

5.
Um dia vou virar luz
voltar a ser
restos de estrelas.


Sintonia


Um dia tive um sonho
agradável e tranquilo
admirava a imensidão
olhando abismado as estrelas
e percebi
o céu pintado
o infinito escuro
como se fosse uma imensa partitura
e cada estrela uma nota
e vi música nos astros
e som vindo do espaço
esse sonho,
foi uma sensação
de plena harmonia com o todo
naquele momento percebi
profundamente em minha alma
a música das estrelas.
Outro dia tive outro sonho
estava numa sala
com um pianista
seria um anjo mentor?
Um jovem que falou comigo
no idioma dos sons
e tocou uma peça suave
e entendi sua música
em outro momento
ele me mostrou outras obras
e suas partituras
e percebi tudo
numa língua universal
vi naquelas partituras
sinais que eu entendia
que se traduziam em letras e sons
e mais uma vez
senti-me em harmonia
com a música
com o universo
com o piano
do jovem artista
naquele sonho
naquela sala de harmonia.


Invisibilidade


aos garis do Rio de Janeiro

Você não percebe
mas alguém limpa sua rua
recolhe o lixo
que você descartou
da casa
quintal
bairro
cidade
país
planeta
lixeiro pode fazer greve sim, Carlos
a culpa dos entulhos nas calçadas
é do povo
que não tem educação
e joga o lixo no chão,
“chão é pra plantar semente”,
cantou o poeta
não adianta multar
a cidade maravilhosa
alguém tem que limpar suas sujeiras
sobrou para o gari
com seu uniforme colorido
mas você e o resto do país
não percebe o gari
que faz a parte dele
e indiferente
você nunca deu moral ao gari
você veio aqui
apenas pra sujar o mundo.


Voz do espaço


Quanto olho as estrelas
vejo seu rosto
estampado no infinito
quando olho pro universo
ouço sua voz
vinda do cosmo
de olho no ponto azul
na imensidão da galáxia.
Cuidem do planeta,
ele disse em vida,
preparem a terra
para receber visitas do espaço
a resposta do disco de ouro
está próxima.
Era Carl Sagan – um deus – astronauta?


Portas e janelas


Coisas comuns a um engenheiro
mas não para um poeta
que gosta de espaços
portas e janelas fechadas
sufocam o olhar
versos devem ser livres
para voar
além das portas enferrujadas
e das vidraças quebradas.
A janela da poesia
emperrada
o ruído cortante
da porta velha
do poema comido
por cupins famintos
a janela da mente
embaçada
o medo turvo
do vidro rachado
janela fechada
não revela a magia
porta fechada
não passa
nem meio poeta
na paisagem.


Suavidade


Andamento moderato
de cordas aveludadas
dedos curtos e delicados
acariciam suaves notas
ouve
a voz da terra
o ronco do violão
o choro contido
do coração cadenciado
o músico mineiro
absorve
a suavidade
do silêncio.


Desperdícios brasileiros


1. Carnaval

Em março começa o barulho,
BH antes silêncio,
agora um saco,
um entulho.
O que precisa no país
é pular a festa da carne,
de longe
até que é bom
de se ver.
Aproveite a festa
pra visitar os hospitais.

2. Futebol

Em junho é a tal da Copa.
O que falta no país
é política pública,
um bando de marmanjos
correndo atrás da bola
e milhões vendo
os recursos públicos no ralo
e ainda vibram com o gol.
Aproveite o jogo
pra visitar as escolas.

3. Eleições

Em outubro mais lixo pelas ruas,
pela tevê
palavras ao vento.
O que não falta no país
é enganação,
mais um ano de mentiras
onde o povo elege
fantasmas
de mentes vazias de Brasília
Panis et circenses
barrigas vazias
e muita palhaçada.
Aproveite a farsa
pra exercer a cidadania
numa democracia incompleta.


Mera ilusão


Não existe nada além
do que nosso cérebro
criou na imaginação
fora de nossa mente
um imenso vazio
fora de nosso corpo
o esquecimento frio
em frente da imagem
que você pensa ver
nada existe
é tudo ilusão
manipulado pela máquina
uma deslavada mentira
tudo programado pelo pensamento
tudo é criado
inventado
cuidado com as ordens
que você dá
ao controlador de si mesmo
para enganar a mente
porque tudo que se vê
é sonho
apenas fantasia
de um programador genético
um criador brincalhão
que manipula nossa frágil existência
mas alguém quer me dominar...!


Ponto de vista


Aquele que precisa
delirantemente
ver a luz na paisagem
com cones minúsculos
bastonetes turvos
mácula furada
lentes sujas
lupas fracas
catarata a embaçar a córnea
frágil
crateras da lua
parecendo as águas
agitadas de Niágara
cristalino opaco
retina bombardeada por laser
o mundo visto por um olho só
o outro
assustadora bola de vidro
olho de lobo
na escuridão da noite
sombria
a procurar abrigo na solidão
retinopatia
como buscar as estradas
sem ver o caminho
atravessar uma rua
ler placas
andar em calçadas esburacadas
feito suas córneas ulceradas
cumprimentar pessoas
ler um livro
identificar conhecidos
perceber o mundo
vasto e escuro mundo
ampliar os sentidos
a percepção do silêncio
como escrever
poesia na escuridão?
- Quantos dedos têm aqui?
- Não tenho a mínima ideia, doutor.


Pequenos gestos


Pra bom entendedor
aquele que entende a dor
meio verso basta
meia lua
inteira
meio sorriso
largo
moderato
meio olhar
de gelar a alma
um pingo no livro
é beijo.
O Ivo viu a uva
ovo
e uva boa.
A vida
é um desejo
poeta ri à toa.


Mago


O ser mago
o ser amargo
a cegueira
o mago ser
o amargo ser
o ser tudo
o sal amargo
o amargo sal
sara o ego
o ego salva
Sara má, go!
O ser todo
Saramago.


Toques


Elogiei seus cabelos sedosos
suas unhas bem feitas
esmalte discreto
belo pé
pequeno amuleto
higiene pessoal
perfeita
boca desejo
lábios grossos
grandes lábios
corpo delgado
vestido sensual
abaixo do joelho:
- Poxa, que coxa!
Segurei sua mão
delicadas mãos
cheiro bom de creme
pele macia
dedos longos e finos
de pianista
imensos olhos ovais de jabuticaba
adoro a fruta
chupo até o caroço
sorriso de gelar o olhar.
Toquei
sua alma,
mas não toquei seu sexo
e nem seu coração,
toquei
levemente sua face rosada,
mas não era amor.


O uivo da loba


Vou ali assistir a lua
na imensa tela plana de Deus, 
nos olhos escuros da noite
de bonde com o infinito...
naquela noite silenciosa. 
no impressionante céu,
mesmo com neblina,
sereno e frio
sobre as montanhas
fiz amor com você
de madrugada
lá na caixa d'água
de Diamantina...
não estávamos sozinhos,
as estrelas piscavam pra gente
e a lua cheia,
grávida de poesia,
repleta de sentimento
iluminava nosso amor
e foi belo ouvir você
uivar pra lua
naquele momento.
             

Poemas do livro Percepção das coisas (2014), Ivo Pereira